Bolsa FamĂlia, que completaria 18 anos, foi revogado por Medida Provisória e muitas dĂșvidas ainda pairam sobre o novo AuxĂlio Brasil. BeneficiĂĄrios criticam falta de clareza na comunicação do governo. Ariana Flores Martins tem 35 anos e cria sozinha quatro filhos, com idades entre 12 e 18 anos, na Fazenda da Juta, favela localizada na região de Sapopemba, no Sudeste da capital paulista.
BeneficiĂĄria do Bolsa FamĂlia hĂĄ 12 anos, ela conta atualmente com uma renda de pouco mais de R$ 600 por mĂȘs para sustentar sua famĂlia de cinco pessoas.
Desse valor, R$ 375 vĂȘm do AuxĂlio Emergencial, pouco superior aos R$ 325 a que ela tinha direito pelo Bolsa FamĂlia, antes da pandemia — pelas regras do auxĂlio, os benefĂcios não podem ser acumulados e fica em vigor apenas o mais alto deles.
Outros cerca de R$ 250 ela consegue vendendo balas nas ruas com a ajuda de um dos filhos.
"Com o dinheiro do Bolsa FamĂlia, eu pago aluguel, e com o dinheiro das balas, compro as coisas dentro de casa", conta Ariana, que jĂĄ trabalhou como auxiliar de limpeza, mas tem dificuldade para encontrar emprego por não saber ler, nem escrever.
Durante a pandemia, ela contou com a doação de cestas bĂĄsicas, mas nos Ășltimos meses essa ajuda não tem mais vindo. Sem gĂĄs em casa, estĂĄ cozinhando na casa da vizinha. "Ainda bem que Deus colocou uma vizinha boa aqui para me ajudar", diz a mãe de famĂlia.
Ariana não sabe ao certo, porém, se continuarĂĄ contando com a ajuda dos programas de transferĂȘncia de renda do governo federal, jĂĄ que o AuxĂlio Emergencial se encerra ao fim de outubro e ainda não hĂĄ clareza sobre como se darĂĄ a implementação do AuxĂlio Brasil, programa que deve substituir o Bolsa FamĂlia a partir de novembro.
"Tenho muitas dĂșvidas. Não sei qual vai ser a quantia, se vão tirar ou por a mais, se vai ser para mais ou menos gente", afirma.
"Se vocĂȘ tem um emprego fixo, que dĂĄ para vocĂȘ manter sua casa, o aluguel, a alimentação, dĂĄ para segurar. Mas se vocĂȘ trabalha sozinha na rua, às vezes tem renda, às vezes não. Esse mĂȘs, por exemplo, eu não tenho conseguido trabalhar, porque tem sido só chuva. Eles não falam direito como vai ser e deixam as famĂlias inseguras, porque às vezes é a Ășnica renda que temos."
O Bolsa FamĂlia completaria 18 anos nesta quarta-feira (20/10), mas foi revogado pela Medida Provisória que criou o AuxĂlio Brasil (MP 1.061/2021), publicada no DiĂĄrio Oficial da União em 10 de agosto. A MP passa a valer imediatamente, mas ainda terĂĄ que ser votada pelo Congresso em até 120 dias para que o novo programa se torne definitivo.
O AuxĂlio Brasil é a tentativa do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de imprimir uma marca própria na assistĂȘncia social, apagando — às vésperas das eleições de 2022 — o nome fortemente associado às gestões petistas.
Novo programa, muitas dĂșvidas
Nesta quarta-feira, o ministro da Cidadania, João Roma, fez uma declaração à imprensa sobre o novo AuxĂlio Brasil, um dia após Bolsonaro cancelar de Ășltima hora um evento sobre o mesmo tema.
A declaração do ministro, no entanto, deixou no ar muitas dĂșvidas sobre o futuro do novo programa de renda voltado aos brasileiros mais vulnerĂĄveis.
Segundo Roma, haverĂĄ um reajuste linear de 20% em todos os benefĂcios do antigo Bolsa FamĂlia. Esses benefĂcios, segundo ele, tĂȘm valores que variam de menos de R$ 100 até mais de R$ 500, dependendo da composição de cada famĂlia.
O reajuste serĂĄ aplicado a partir de novembro, com carĂĄter permanente, e o governo espera zerar a fila do Bolsa FamĂlia até dezembro deste ano, levando o AuxĂlio Brasil para 17 milhões de famĂlias.
O nĂșmero é maior do que as 14,6 milhões de famĂlias contempladas pelo Bolsa FamĂlia atualmente, segundo Roma. Mas é menor que as 39,3 milhões de famĂlias que receberam o AuxĂlio Emergencial em 2021 até o mĂȘs de julho, segundo dados do próprio governo federal.
Bolsa FamĂlia, que completaria 18 anos nesta quarta-feira (20/10), foi revogado por Medida Provisória
Ainda conforme o ministro, em carĂĄter transitório, até dezembro de 2022 — ano de eleições presidenciais —, Bolsonaro determinou que nenhuma famĂlia deve receber menos de R$ 400. A forma de financiar esse valor durante os próximos 14 meses, no entanto, não estĂĄ clara.
Roma disse que o governo trabalha para que isso seja feito "dentro das regras fiscais", sem a necessidade de utilização de créditos extraordinĂĄrios. A declaração foi dada após uma forte reação negativa dos mercados à perspectiva de que parte do auxĂlio seja financiada com recursos fora do teto de gastos, regra que limita o crescimento da despesa do governo à inflação.
No fim da tarde, no entanto, o ministro da Economia, Paulo Guedes, voltou a falar na possibilidade de furar o teto de gastos em R$ 30 bilhões para bancar o novo AuxĂlio Brasil.
Ou seja, a dĂșvida sobre como o novo programa serĂĄ financiado permanece. E também o futuro da assistĂȘncia social no Brasil depois de 2023, quando as eleições tiverem passado.
'Estabilidade é fundamental'
Leandro Ferreira, especialista em gestão de polĂticas pĂșblicas e presidente da Rede Brasileira de Renda BĂĄsica, considera a indefinição do governo quanto ao futuro da principal polĂtica social do paĂs um desrespeito com a parcela mais vulnerĂĄvel da população.
"Da mesma forma como os mercados financeiros gostam de previsibilidade, os mais vulnerĂĄveis também gostam. Eles querem saber se vão ter os recursos necessĂĄrios para atender suas necessidades", diz Ferreira. "Estabilidade é fundamental, quando se trata de economia, seja a economia dos mais ricos ou a dos mais pobres."
Segundo o especialista em polĂticas pĂșblicas, desde quando o AuxĂlio Emergencial começou a ser discutido, no inĂcio da pandemia, jĂĄ se sabia que seria necessĂĄrio repensar o futuro do Bolsa FamĂlia.
"Deixar para a Ășltima hora, com duas semanas para terminar o AuxĂlio Emergencial, e não fazer essa discussão publicamente, impossibilitando o debate técnico, é muito ruim para o conjunto das polĂticas pĂșblicas do paĂs", lamenta.
Complicando o que era simples
Para Naercio Menezes Filho, coordenador da CĂĄtedra Ruth Cardoso e pesquisador do Centro de Gestão e PolĂticas PĂșblicas (CGPP) do Insper, se por um lado é positivo que o governo tenha a intenção de dar continuidade à polĂtica de transferĂȘncia de renda, com foco nas crianças e aumentando o valor do benefĂcio, por outro lado, o AuxĂlio Brasil tem problemas de desenho.
O ministro da Cidadania, João Roma, durante declaração à imprensa sobre o novo AuxĂlio Brasil
O principal deles é sua complexidade. O programa traz dentro dele nove benefĂcios diferentes: BenefĂcio Primeira Infância; BenefĂcio de Composição Familiar; BenefĂcio de Superação da Extrema Pobreza; AuxĂlio Esporte Escolar; Bolsa de Iniciação CientĂfica Junior; AuxĂlio Criança Cidadã; AuxĂlio Inclusão Produtiva Rural; AuxĂlio Inclusão Produtiva Urbana e BenefĂcio Compensatório de Transição.
"São vĂĄrios penduricalhos, que acabam desvirtuando a essĂȘncia do programa e usando recursos que poderiam ser destinados diretamente ao pagamento da transferĂȘncia", considera Menezes Filho.
O presidente da Rede Brasileira de Renda BĂĄsica tem a mesma avaliação.
"O principal problema do novo programa é tornar a assistĂȘncia muito mais complexa do que era o Bolsa FamĂlia, com diversas categorias de benefĂcios que ninguém sabe se vai ser capaz de atender para se tornar elegĂvel", diz Ferreira.
"Não é que não seja importante criar incentivos ao esporte ou à iniciação cientĂfica, mas vincular isso à proteção social gera um excesso de instrumentos que pode complicar algo que era simples e jĂĄ bem conhecido da população e da comunidade técnica."
Para Ferreira, outro problema do novo programa é que ele desmonta a estrutura de monitoramento social vinculada ao Cadastro Ănico, instrumento que hoje permite o acesso do beneficiĂĄrio a diferentes programas sociais.
JĂĄ Menezes Filho avalia que a opção do governo de centrar o acesso dos usuĂĄrios ao novo programa no aplicativo, a exemplo do que foi feito no auxĂlio emergencial, pode dar maior agilidade à polĂtica de transferĂȘncia de renda.
Ambos concordam, porém, que teria sido muito mais fĂĄcil melhorar o Bolsa FamĂlia, em vez de criar todo um novo programa do zero. "O que precisaria fazer era acabar com a fila, aumentar o valor e usar o aplicativo. Não precisava de novo projeto de lei, mudar o nome, nada disso, eram só ajustes operacionais", defende o professor do Insper.
'Sei lĂĄ se vai dar certo'
Enquanto o governo busca uma solução para financiar o novo programa, as incertezas dos beneficiĂĄrios permanecem.
"A gente tem muitas dĂșvidas. Sei lĂĄ se esse novo programa vai dar certo ou não, se muita gente pode ficar de fora depois que mudar. Tenho muita dĂșvida mesmo", diz Arlete Vitório, de 56 anos e também moradora da Fazenda da Juta, na região Sudeste de São Paulo.
Mãe de um menino com problemas de saĂșde, cujos cuidados dificultam a ela voltar ao mercado de trabalho, Arlete vive atualmente apenas com a renda de R$ 375 do AuxĂlio Emergencial e alguma ajuda de seus irmãos. Antes do auxĂlio, recebia R$ 164 do Bolsa FamĂlia.
Segundo ela, não saber o futuro do Bolsa FamĂlia gera muita insegurança. "Pouco ou muito, vocĂȘ sabe que vai receber, depois que começar a mudar, eu não sei mais de nada", afirma.
"Cada hora eles falam uma coisa. Deveria ter uma explicação bem melhor e certa, que eles falem e seja aquilo, porque cada hora eles mudam de plano, mudam de opinião. Tinha que ser uma coisa mais sensata, porque as pessoas estão precisando muito", opina a dona de casa.
Sabrina Viana de Souza, de 22 anos e moradora do municĂpio de Caucaia, no CearĂĄ, compartilha da mesma opinião. Ela é mãe de um menino de 1 ano e 7 meses e vive com cerca de R$ 400, sendo R$ 250 do AuxĂlio Emergencial e o resto da venda de trufas. Antes do auxĂlio, com o Bolsa FamĂlia, recebia do programa R$ 130.
"Eu ainda não sei como vai funcionar essa mudança. A gente fica pensando: se diminuir, se aumentar, se acabar, pode prejudicar a gente de alguma forma", afirma. "O dinheiro [do auxĂlio] vai todo para as coisas do bebĂȘ, com as trufas compramos os alimentos, só com elas seria muito pouco."
"Eles tinham que explicar melhor, detalhadamente, porque mesmo eles falando, a gente não consegue entender como vai ser realmente. Deixa muito a desejar o jeito que eles falam."