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Por que governo Bolsonaro Ă© investigado por suspeita de genocĂ­dio contra os Yanomami

Por Redação em 27/01/2023 às 07:06:53
Abertura de inquérito pela PolĂ­cia Federal vai investigar se governo anterior teve participação ou omissão nas ações que resultaram na crise humanitĂĄria que acontece neste território indĂ­gena. Entenda o que é genocĂ­dio e quais pontos serão apurados. PF vai investigar se houve omissão de agentes pĂșblicos no território yanomami durante governo Bolsonaro

Brendan Smialowski/AFP

A PolĂ­cia Federal anunciou a abertura de um inquérito para investigar se houve crime de genocĂ­dio e omissão de socorro ao povo Yanomami pelo governo de Jair Bolsonaro (PL).

A investigação vai começar após um pedido feito por FlĂĄvio Dino, ministro da Justiça e da Segurança PĂșblica, um dos integrantes da comitiva que visitou o território indĂ­gena no dia 21 de janeiro.

Outras duas denĂșncias estão em avaliação preliminar no Tribunal Penal Internacional, localizado em Haia, nos PaĂ­ses Baixos. Nelas, a Associação dos Povos IndĂ­genas do Brasil (Apib) e a Comissão Arns defendem que o ex-presidente cometeu crimes de genocĂ­dio durante a pandemia de Covid-19 e na forma como ele lidou com a proteção dos indĂ­genas nos Ășltimos quatro anos.

Procurado pela reportagem, Bolsonaro não comentou o tema. Antes, Bolsonaro escreveu em aplicativo de mensagens que a denĂșncia sobre a crise yanomami era "farsa da esquerda" e argumentou que seu governo levou atenção especializada para territórios indĂ­genas.

Quais são os argumentos que fundamentam acusações tão graves? E o que mais disse Bolsonaro?

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Os juristas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que hĂĄ elementos suficientes para iniciar uma investigação, mas que é preciso encontrar evidĂȘncias e provas para seguir com eventuais julgamentos no futuro. A seguir, entenda como, segundo eles, questões como estĂ­mulo ao garimpo, apuração sobre desvio de medicamentos e alertas ignorados pelo governo podem ser levados em consideração.

O que é genocĂ­dio?

O Tribunal Penal Internacional diz que o genocĂ­dio é caracterizado pela "intenção especĂ­fica de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, matando seus membros por outros meios, causar lesões corporais ou mentais graves, impor deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar a destruição fĂ­sica total ou parcial, impor medidas destinadas a prevenir nascimentos ou transferir forçadamente crianças de um grupo para outro".

A jurista Sylvia Steiner, Ășnica brasileira que foi juĂ­za da corte de Haia entre 2003 e 2012, explica que "genocĂ­dio não é qualquer matança".

"Tem que existir a intenção de destruir um grupo por causa da nacionalidade, da etnia, da raça ou da religião dele", resume.

A especialista também aponta que hĂĄ uma diferença entre genocĂ­dio e crimes contra a humanidade.

"Crimes contra a humanidade são aqueles praticados por parte de uma polĂ­tica de um Estado ou de uma organização que atacam a população civil. Eles incluem assassinato, violĂȘncia sexual, deportação forçada, perseguição, extermĂ­nio, escravidão?", lista.

"Nesse caso, não existe um dolo especial, ou seja, a intenção clara de eliminar um grupo por questões como nacionalidade, etnia, raça, religião", complementa.

Localizado em Haia, o Tribunal Penal Internacional julga casos de genocĂ­dio e crimes contra a humanidade

Getty Images

O advogado BelisĂĄrio dos Santos Junior, da Comissão Internacional de Juristas, lembra que o Brasil possui uma lei sobre o genocĂ­dio desde 1956.

"Ela foi aprovada ainda no governo de Juscelino Kubistchek, que reconhece não apenas a ação direta, mas também a incitação ao genocĂ­dio", diz.

A lei brasileira, portanto, também pune aqueles que estimulam "direta e publicamente alguém a cometer qualquer dos crimes" relacionados ao genocĂ­dio.

Mas o que pode pesar contra o governo Bolsonaro durante as investigações?

EstĂ­mulo ao garimpo

O relatório Yanomami Sob Ataque, publicado em abril de 2022 pela Hutukara Associação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye'kwana, com assessoria técnica do Instituto Socioambiental, faz um balanço da extração ilegal de ouro e outros minérios nessa região, que compreende a maior reserva indĂ­gena do paĂ­s.

"Sabe-se que o problema do garimpo ilegal não é uma novidade na TIY [Terra IndĂ­gena Yanomami]. Entretanto, sua escala e intensidade cresceram de maneira impressionante nos Ășltimos cinco anos. Dados do MapBiomas indicam que a partir de 2016 a curva de destruição do garimpo assumiu uma trajetória ascendente e, desde então, tem acumulado taxas cada vez maiores. Nos cĂĄlculos da plataforma, de 2016 a 2020 o garimpo na TIY cresceu nada menos que 3.350%", aponta o texto.

O levantamento das associações mostra que, em outubro de 2018, a ĂĄrea total destruĂ­da pelo garimpo somava pouco mais de 1.200 hectares. "Desde então, a ĂĄrea impactada mais do que dobrou, atingindo em dezembro de 2021 o total de 3.272 hectares", continua a publicação.

Mineração e falta de polĂ­ticas pĂșblicas representam ameaças aos povos indĂ­genas, defende corte internacional

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Durante os quatro anos de presidĂȘncia, Bolsonaro falou diversas vezes sobre a mineração em terras indĂ­genas — o governo propôs inclusive um projeto de lei que viabilizaria a prĂĄtica dentro da lei.

Em março de 2022, por exemplo, ele afirmou que "Ă­ndio quer internet, quer explorar de forma legal a sua terra, não só para agricultura, mas também para garimpo".

"A Amazônia é uma ĂĄrea riquĂ­ssima. Em Roraima, hĂĄ uma tabela periódica debaixo da terra", acrescentou.

Santos Junior, que integra a Comissão Arns, entende que são vĂĄrios os exemplos do estĂ­mulo de Bolsonaro ao garimpo.

"Os garimpeiros vão se apropriando das ĂĄreas, desmatam a floresta, invadem unidades bĂĄsicas de saĂșde? Quem dĂĄ suporte a isso é justamente quem incentiva o garimpo e o desmatamento, quem não dĂĄ as condições para que povos e etnias sobrevivam", defende.

Falta de remédios e alimentos

O Ministério PĂșblico Federal também fez operações para apurar desvios de medicamentos em território yanomami.

Segundo o órgão, só 30% de mais de 90 tipos de medicamentos que deveriam ser fornecidos foram entregues em 2022.

Os procuradores dizem que o desvio de vermĂ­fugos (que tratam de infestações de vermes) impediu o tratamento adequado para 10 mil das 13 mil crianças que vivem nesta região.

HĂĄ ainda denĂșncias sobre a interrupção no fornecimento de alimentos.

Alisson Marugal, procurador da RepĂșblica em Roraima, afirmou que o Ministério da SaĂșde cortou o fornecimento de alimentação aos indĂ­genas nos postos de saĂșde do Estado em 2020, sem dar explicações.

Todo o cenĂĄrio de casos e mortes por desnutrição e malĂĄria fez com que o Ministério da SaĂșde decretasse uma emergĂȘncia sanitĂĄria no território yanomami em 21 de janeiro.

Entre as ações emergenciais, o governo anunciou o envio de profissionais de saĂșde e a criação de hospitais de campanha para atender os pacientes.

Segundo o secretĂĄrio de SaĂșde IndĂ­gena do ministério, Ricardo Weibe Tapeba, mais de mil indivĂ­duos jĂĄ foram resgatados em situação de extrema vulnerabilidade do local.

Alertas ignorados

Por fim, diversas instituições nacionais e internacionais chamaram a atenção para o que vinha acontecendo com os yanomami nos Ășltimos meses e anos.

Em nota, a Apib disse que a invasão do garimpo ilegal na Terra IndĂ­gena Yanomami foi denunciada pelo menos 21 vezes à justiça e aos órgãos do governo durante a gestão de Bolsonaro.

Existe também uma petição feita ao Supremo Tribunal Federal em maio do ano passado sobre esse assunto. Nela, a Apib e outras entidades pedem ações do governo para conter a invasão de garimpeiros nas terras onde vivem os yanomami e outros povos, como os Munduruku.

No dia 1Âș de julho de 2022, a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu uma decisão cobrando uma resposta do Brasil para "proteger a vida, a integridade pessoal e a saĂșde dos membros dos povos indĂ­genas Yanomami, Ye'kwana e Munduruku".

A comissão que avaliou o caso disse que a situação dos indivĂ­duos dessas trĂȘs populações era de "extrema gravidade e urgĂȘncia".

Entre as medidas que o paĂ­s precisaria tomar, a corte apontou a necessidade de "proteger efetivamente a vida, a integridade pessoal, a saĂșde e o acesso à alimentação e ĂĄgua potĂĄvel" desses povos.

A corte pediu ao Estado brasileiro um relatório com um resumo das ações que foram tomadas para reverter a situação até o dia 20 de setembro de 2022. Depois disso, novas atualizações sobre o caso deveriam ser enviadas a cada trĂȘs meses.

A BBC News Brasil entrou em contato com a Corte Interamericana de Direitos Humanos para saber se o paĂ­s estava cumprindo as medidas.

Por meio da assessoria de comunicação, o órgão afirmou que, "até o dia de hoje, a corte estĂĄ esperando uma resposta por parte do Estado brasileiro".

O que pode acontecer?

Para Santos Junior, "o ex-presidente, por causa de suas obsessões [com o garimpo], aparenta preencher os requisitos de quem assume os riscos". "Não é normal vocĂȘ deixar um povo sem assistĂȘncia médica, sem as condições mĂ­nimas de sobrevivĂȘncia", diz.

"Os indĂ­genas foram sufocados de uma tal forma que as mortes e a redução do grupo se encaixam, a meu ver, na descrição do genocĂ­dio pelas ações ou inações do então Presidente da RepĂșblica", acrescenta o advogado.

A jurista Sylvia Steiner pondera que a abertura de um inquérito serve justamente para fazer investigações e reunir provas de possĂ­veis crimes que foram eventualmente cometidos.

"Por ora, não hĂĄ fatos provados. Existem alguns indĂ­cios em relação ao genocĂ­dio. E isso é sempre complicado, porque vocĂȘ precisa comprovar que havia uma intenção de eliminar os Yanomami da face da Terra", explica.

Na visão da jurista, outra possibilidade é investigar possĂ­veis crimes contra a humanidade — e não o genocĂ­dio.

"Pode ser observada a existĂȘncia de um plano, de uma polĂ­tica de Estado contra os yanomami, mas em função da terra que eles ocupam e do interesse em se apropriar das riquezas que existem ali. Ou seja, nesse caso não falamos de uma perseguição dos yanomami por causa da etnia deles", pontua.

"Acontece que essa polĂ­tica de Estado leva à exterminação do grupo. Então, nós podemos estar diante de um crime contra a humanidade de extermĂ­nio ou perseguição", completa.

Steiner chama a atenção para o fato de a legislação brasileira não prever crimes contra a humanidade. Nesse caso, a eventual investigação e um julgamento posterior dependem da ação do Tribunal Penal Internacional.

A especialista aponta que esses julgamentos em Haia, de possĂ­veis responsĂĄveis pelos atos criminosos, podem render penas de até 30 anos ou prisão perpétua em casos extremos.

Comunidades que fazem parte da Reserva Yanomami enfrentam crise humanitĂĄria que tem como principal causa a expansão do garimpo ilegal

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Controvérsias e discordâncias

Steiner aponta que o conceito de genocĂ­dio e crimes contra a humanidade é alvo de muitas discussões entre os juristas.

"Uma parcela acredita que, decorrido tanto tempo desde que o conceito foi definido nos anos 1940, é preciso ter um entendimento um pouco mais alargado do que é um genocĂ­dio. Eles argumentam que o mundo mudou e a interpretação desse crime deveria ser mais flexĂ­vel", diz

"Eu me situo entre aqueles que seguem a letra da lei. Então, para mim, tem que ficar demonstrado que realmente houve a intenção genocida, a intenção de destruir no todo ou em parte aquela comunidade, seja em razão da religião, da etnia, da raça ou na nacionalidade."

"Fora disso, pode ser que estejamos diante de um crime contra a humanidade, que é tão grave quanto", complementa.

De acordo com a especialista, o conceito de crimes contra a humanidade é relativamente novo — foi ratificado internacionalmente a partir do Estatuto de Roma em 2002 — e, por isso, ainda gera confusão.

"Esse conjunto de normas estĂĄ acima das regras dos paĂ­ses e proĂ­be uma série de condutas que põe em risco a paz e a humanidade de comunidades inteiras", conta Steiner.

"Quando temos escândalos lamentĂĄveis e catĂĄstrofes humanitĂĄrias, devemos usar esse momento para progredir do ponto de vista moral e ético. Que a atual situação desperte as pessoas e os paĂ­ses para as necessidades especiais das populações indĂ­genas. JĂĄ não era sem tempo", conclui.

A BBC News Brasil tentou o contato com Bolsonaro por meio de assessores, ex-ministros, pessoas próximas, a comunicação do Partido Liberal e pelas próprias redes sociais para que ele pudesse dar um posicionamento a respeito de todos os pontos e alegações. Não foram enviadas respostas até a publicação desta reportagem.

Assim que a emergĂȘncia de saĂșde veio à tona nos Ășltimos dias, o ex-presidente fez postagens no aplicativo de mensagens Telegram.

Ele classificou a denĂșncia sobre a crise yanomami como "farsa da esquerda" e disse que seu governo realizou 20 ações de saĂșde entre 2020 e 2022 que levaram atenção especializada para dentro dos territórios indĂ­genas, especialmente em locais remotos e com acesso limitado.

Segundo o ex-presidente, foram beneficiados mais de 449 mil indĂ­genas, com 60 mil atendimentos. Ainda na mensagem, ele afirmou que o governo federal encaminhou 971,2 mil unidades de medicamentos e 586,2 mil unidades de equipamentos de proteção individual, totalizando 1,5 milhão de insumos enviados para essas operações.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64417930

Fonte: G1

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