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'A gente vem porque tem fome': o drama de brasileiros que não sabem quando vão comer de novo

Por Redação em 17/10/2021 às 10:05:40
No Dia Internacional da Erradicação da Pobreza, g1 faz uma imersão na realidade de João Pessoa e tenta entender as dimensões e as consequências da fome no Brasil.


Penha Maria de Sousa é uma mulher negra, pobre, 35 anos de idade, mãe de cinco filhos, moradora do Porto do Capim, uma comunidade ribeirinha de João Pessoa. Está desempregada. Trabalha catando latinhas pelas ruas da cidade e vendendo para a reciclagem. Arrecada entre R$ 600 e R$ 700 por mês e, não raro, falta dinheiro para comprar comida. Desalentada, entregue à própria sorte, já teve dias em que dormiu com fome, sem ter o que comer.

Para sobreviver, começou a mapear os trabalhos voluntários de quem deixou de esperar iniciativas estatais e começou a distribuir comida à população pobre da capital paraibana. Quase todas as noites, sobe para o Centro em busca de uma quentinha, de um pedaço de pão, de algo para comer. Muitas vezes consegue, ela conta. E essas ajudas, vindas de pessoas anônimas, que ela nem sempre conhece, mas agradece, torna-se fundamental para a sobrevivência dela e de sua família.

Penha é uma dentre 116,8 milhões de brasileiros que convivem com algum grau de insegurança alimentar no país. Os dados são do fim de 2020 e foram coletados pelo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). Dados que escancaram uma realidade dura. E que neste domingo, 17 de outubro, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) lembra o Dia Internacional da Erradicação da Pobreza, demonstram que o país está longe de resolver o problema.

Aliás, é consensual que o problema piorou - e muito - nos últimos anos. O g1 conversou com pesquisadores, com voluntários que tentam fazer a sua parte, com pessoas que sentem fome no Brasil. A resposta é a mesma: há anos não se via tanta gente nas ruas, pedindo dinheiro nos semáforos, dormindo nas calçadas, sem ter o que comer.

A fila da fome

A conversa com Penha aconteceu na quinta-feira (7), na calçada da agência da Caixa Econômica Federal localizada na rua Treze de Maio, região central de João Pessoa. Era noite. Ela segurava uma quentinha com cuscuz e salsicha, um pão, um copo de café preto com açúcar. Recebera a comida após enfrentar uma fila que tinha mais de 100 pessoas, todas com diferentes níveis de fome.

Vários ali eram como ela e tinham ao menos uma casa para morar. Mas tinham muitos também numa situação bem mais precária. Aqueles que moravam ali mesmo, em colchões sujos colocados embaixo da marquise do prédio, numa tentativa frágil de fugir do desconforto do concreto, do frio, da chuva.

"A vida sempre foi difícil. Mas ficou mais difícil nos últimos tempos", destaca a mulher, indicando em seguida que toda semana a fila crescia um pouco mais.

Ao lado dela, apareceu de repente uma outra mulher. Severina dos Santos é mais velha. Mora no bairro do Roger e tem 59 anos. Diz que está sem conseguir trabalhar há vários meses e perdeu toda a sua fonte de renda. Ela demonstra certa timidez, não parece querer falar muito. Mas arremata: "É a fome, né? Esse trabalho ajuda a diminuir a fome".

O trabalho, naquele caso, é realizado por um grupo de amigos da capital paraibana. Não é o único que existe atualmente em João Pessoa, mas foi o que o g1 acompanhou ao longo de todo um dia de trabalho, do preparo à distribuição dos alimentos. É gente de classe média que, assustada com o aumento vertiginoso de pessoas em situação de vulnerabilidade social, resolveu se unir para tentar minimizar uma situação que parece cada vez mais fora de controle. E, de fato, ao caminhar por diferentes pontos do Centro, as diferentes histórias de vida vão se atropelando.

Trinta metros adiante, inclusive, estava uma família. Um homem, uma mulher, uma criança que aparentava ter poucos anos de vida. Sentados num colchonete, eles comiam avidamente. Preferiram não se identificar, mas toparam conversar. Era uma família pobre, que perdeu o pouco de renda que tinha com a chegada da pandemia. E, um ano atrás, não conseguiu mais manter a casa onde morava. Desde então, está na rua.

Ao conversar, a mulher demonstra estar feliz. Ela ri, faz um sinal de "v" da vitória com uma das mãos ao dizer que o jantar está gostoso e diz que um prato de comida daqueles é um alento importante na vida deles. Para um pouco, orienta a filha, dá algo para ela comer, volta a conversar. "A comida ajuda, mas às vezes falta um agasalho também", revela.

Perto dali, na Praça dos Três Poderes, um espaço que é circundado pelo Palácio da Redenção (sede do Governo do Estado), pela Assembleia Legislativa da Paraíba e pelo Tribunal de Justiça da Paraíba, a noite escancara uma outra realidade, totalmente contrastante com o poder que o local representa de dia.

Em primeiro plano, a fome; ao fundo, o Tribunal da Justiça da Paraíba

Phelipe Caldas/g1

É mais um ponto em que a fila tem mais de 100 pessoas. São muitas mulheres grávidas, muitas mães com crianças no colo, muitas que seguram filhos pequenos pelas mãos. A fome afeta pessoas de várias gerações. E em meio a esse cenário, é uma menina, que aparenta ter aproximadamente dez anos de idade, que faz a declaração mais direta e reveladora daquela noite:

"A gente vem porque tem fome", resume.

Outro por ali é Adenildo Andrade, de 39 anos. Até pouco tempo atrás ele morava no bairro da Torre, em João Pessoa. Mas, na pandemia, principalmente depois da morte do pai, acabou deixando a casa onde morava. Foi parar na rua há aproximadamente oito meses e perambula por aquela praça desde então.

Vive de lavar carros nas cercanias e a renda lhe ajuda nas necessidades mais básicas. Mas admite que já sentiu fome e frio. "A coisa está feia", atesta.

É uma situação precária. Que ressignifica valores e anseios. Naquela noite, por exemplo, Adenildo parecia particularmente radiante. Além do prato de comida que lhe forraria o estômago, ganhara também uma calça jeans e um tênis. Ambos usados, mas bem conservados. "Minha bermuda estava molhada com a chuva de mais cedo. Isso vai me ajudar a enfrentar melhor o frio da madrugada", comemora enquanto come.

"A gente faz a nossa parte"

Lucineide Paiva Santos tem 52 anos. É casada com Edigerson Santos e tem dois filhos. Há 20 anos ela é a dona da Cozinha do Elias, um pequeno e tradicional restaurante de comida regional localizado no Mercado da Torre, no bairro homônimo de João Pessoa. O nome do estabelecimento comercial é em homenagem ao pai de Neide, como ela é mais conhecida, e o local funciona atualmente vendendo almoços.

É ela quem administra tudo. Abre o local às 7h para iniciar a preparação de comidas típicas como rubacão, rabada, cuscuz, macaxeira, entre outros, e o trabalho vai mais ou menos até 14h30.

Nos últimos tempos, contudo, ela andava angustiada. Era uma percepção apenas empírica, mas que não lhe deixava dúvidas de que a fome aumentara muito na cidade. "Eu via muita gente com fome nos semáforos. Isso, infelizmente, é visível", explica.

Ainda em 2020, conversou com o marido. Resolveu se movimentar. Começou a preparar algumas quentinhas e a servi-las na hora do almoço para o pessoal pobre que circunda o próprio Mercado da Torre. Pedintes, guardadores de carros, moradores de rua. Começou com 10 quentinhas diárias, percebeu que era pouco. Foi aumentando. Estabilizou em 40 quentinhas diárias. Gasta R$ 2 mil do próprio bolso todos os meses para assistir a esse pessoal.

Mas, ela não achava ainda que era suficiente. Queria fazer mais. E, em meio a isso, resolveu conversar com Ronald Lee, um amigo de longas datas e que tem larga experiência em trabalhos sociais, com contato com pessoas que se dispõem a fazer doações. Uniu-se, portanto, a experiência de Neide e de Edigerson com a cozinha de um lado e a capacidade de mobilização de Ronald para conseguir os insumos de outro.

Juntos, criaram em março deste ano o projeto Cozinha da Esperança, que todas as noites de quinta-feira percorrem diferentes pontos do Centro para dar de comer a quem não tem mais como comprar as suas refeições.

"São dois projetos independentes. Eu continuo a fazer as doações de quentinhas na hora do almoço. E nas quintas-feiras a gente faz essa mobilização maior", pondera Neide.

Os três são a "equipe fixa" da Cozinha da Esperança. Mas sempre aparecem outros voluntários para ajudar nos afazeres. É um trabalho hercúleo, cansativo, desgastante, imparável. "A gente entrega tudo o que arrecadou e preparou na quinta-feira à noite. Na sexta-feira, já tem que começar a trabalhar atrás das doações para viabilizar a semana seguinte", explica Ronald.

O projeto é ousado e ainda não chegou ao seu ápice. Começaram com 200 refeições a cada noite de quinta-feira, aumentaram com o tempo para 400 e atualmente conseguem entregar algo em torno de 900 refeições. A meta, contudo, é bater em breve a casa das mil refeições.

Para dar conta de tudo isso, são arrecadados em média, a cada semana, 90kg de cuscuz, 10kg de arroz, 5kg de macarrão, 12kg de carne, 32kg de salsicha, 4kg de feijão, 6kg de café, 10kg de açúcar, 10kg de extrato de tomate, 250 pães.

Nas quintas-feiras, toda a preparação é feita na própria Cozinha do Elias, comandada por Neide e com a ajuda dos outros voluntários que aparecem. São panelas grandes e fumegantes. Nas quentinhas individuais, cuscuz ou macarrão com salsicha. A sopa é levada nas próprias panelas e servida em copos de isopor apenas no local. Acompanha um pão francês. Café, suco e água são armazenados em garrafas térmicas.

Neide Paiva é uma figura alegre e comunicativa. Enquanto cozinha e maneja as pesadas panelas, vai conversando e contando histórias. Mas sempre adota uma expressão séria ao falar de pobreza e fome. Diz que na primeira quinta-feira do projeto, ainda em março, chorou copiosamente ao término de tudo. Ao mesmo tempo, sentiu-se gratificada.

"A gente vê que as pessoas comem com fome. É algo bem difícil no início, mas a gente sabe se renovar", explica.

Ela fala que nem sempre as pessoas a entendem. Muitos a criticam. Alguns a desestimulam:

"Uma pessoa uma vez me disse: "Você não vai acabar com a fome do mundo". Mas eu não quero acabar com a fome do mundo. Eu quero amenizar a dor de quem está perto de mim", enfatiza Neide.

O projeto tem um grupo no Instagram em que usam para divulgar as ações e reforçar o pedido por doações. Tem também um grupo de WhatsApp, esse mais restrito a quem participa de forma mais ativa nas ações de doação e de distribuição dos alimentos. Atualmente, são 40 pessoas nele. Mas nem todos vão para as entregas.

"A gente nunca conseguiu repetir a mesma equipe duas semanas seguidas. Nós três estamos sempre presentes. Mas tem semana que aparecem 20 pessoas, tem semana que só aparecem sete. Mas a gente faz a nossa parte", explica Ronald.

Ele destaca, aliás, que o trabalho precisa continuar porque, pouco a pouco, as pessoas pobres da cidade começaram a contar com aquela ajuda. "Eles já esperam a gente", avalia, pesando a responsabilidade que carregam.

Neide, Edigerson e Ronald se encontram todos os dias na hora do almoço. Avaliam o que já conseguiram e calculam o que ainda falta conseguir. Eles nunca pedem dinheiro. Preferem receber os insumos. Ajuda, segundo eles, a diminuir suspeitas. Sim, elas existem.

"É difícil fazer isso toda semana. Quase 90% das doações são de amigos. Em geral, os mesmos amigos. Quando você aborda pessoas diferentes, as perguntas são sempre as mesmas: "Você é de igreja?", "você é candidato?", "mas não é para cachaça não, né?". Algumas pessoas não conseguem entender que a gente só quer ajudar", desabafa Ronald Lee.

Ele destaca ainda que é notório o aumento das pessoas em situação de vulnerabilidade, morando nas ruas, passando fome. "Onde antes só apareciam 10 pessoas, hoje aparecem 50, 100. E são pessoas que, se a gente não aparecer naquele dia, não vão comer nada".

Para não falhar com ninguém, pois, o trabalho é todo cronometrado. Terminam de cozinhar os alimentos e de armazenar tudo perto das 18h. Depois, a preparação final antes de percorrerem a cidade. Dividem as tarefas de cada um, definem as ordens dos carros e o que cada um deles vai levar.

A preocupação com a pandemia - e com a qualidade dos alimentos - é evidente. Todos de máscara, com aventais que cobrem o tronco e os braços, luvas, toucas. Após essa preparação final e de um último papo ainda no Mercado da Torre, eles partem. Geralmente, passam por oito locais pré-definidos, em que a concentração de pessoas pobres ou moradoras de rua são maiores: Rua Treze de Maio, Praça dos Três Poderes, Ponto de Cem Reis, Mercado Central, Liceu Paraibano, bairros de Varadouro e Trincheiras, Comunidade Bela Vista.

É um trabalho intenso, mas muito organizado. E, justo por isso, rápido. Os carros param com certa distância uns dos outros. Os voluntários descem e já pegam aquilo o que lhes cabem servir. E a fila segue uma organização previamente preparada. A pessoa primeiro pega a quentinha, anda mais um pouco e pega a sopa com o pão e mais na frente o café, o suco, a água.

Conversam um pouco, cumprimentam-se. Alguns mais antigos, já se reconhecem. Trocam afagos e sorrisos. Depois se separam. Um lado vai comer. Para muitos, a primeira refeição do dia. O outro lado entra nos carros e segue para o próximo ponto.

A propósito, essa é a parte que mais mexe com Edigerson. Ele conta de um dia em especial em que foi profundamente tocado.

"Foi alguns meses atrás. Dei uma quentinha para uma mulher. Ela puxou o meu braço, chorou, agradeceu. Disse que era a primeira refeição dela em dois dias", relembra Edigerson.

A pandemia agravou o problema, mas não explica tudo

Em meio a uma pandemia global de Covid-19 que já dura mais de um ano e que matou pessoas de todo o mundo, incluindo mais de 600 mil brasileiros, existe uma tendência em se acreditar que ela é a única culpada pelo aumento da pobreza no país. Mas para a professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Flávia Pires, essa não é a resposta para todos os problemas.

Coordenadora do grupo de pesquisa Criança, Sociedade e Cultura (Crias-UFPB), e atualmente realizando pesquisas na Rutgers University, dos Estados Unidos, Flávia estuda os impactos de programas sociais no cotidiano de crianças à margem do Estado.

Ela explica que, desde 2018, e portanto bem antes do início da pandemia, já era perceptível um aumento considerável no aumento da pobreza do país. Que foi se agravando a partir de 2019, já no Governo Bolsonaro, e que se tornou ainda mais intenso com a chegada da pandemia.

Ela aponta como fatores para o crescimento da pobreza extrema e da fome no país o desastre da atual gestão federal em dar continuidade ao processo positivo de inclusão de parcelas vulneráveis da sociedade. No fim das contas, portanto, tudo gira em torno do fracasso da política econômica do atual governo.

"O aumento da inflação e a perda do poder de compra provocam um impacto profundo na sociedade. Já não se compra mais nada", destaca a pesquisadora, indicando que o aumento vertiginoso dos preços de produtos essenciais reduz a capacidade do Programa Bolsa Família de dar dignidade às famílias mais pobres, tal como acontecia antigamente. "É por isso que vemos a volta do consumo do pé de galinha, do ovo como única opção, das carnes de má qualidade. Carnes que não eram consumidas mais estão voltando a ser consumidas", completa.

Ela se refere a uma "necropolítica", que escanteia qualquer ator social que não esteja no foco do capitalismo. "Se não fizermos nada, se não nos mexermos enquanto população, se não mudarmos o nosso sistema de vida, nós estamos caminhando para um colapso", adverte.

Ainda de acordo com Flávia Pires, o Governo Bolsonaro "não tem uma política clara sobre combate à desigualdade social", de forma que o problema só tem a se agravar se nada for feito de diferente.

"A fome e a pobreza têm muito a ver com a riqueza de um país. Acontece que o Brasil continua sendo um país muito rico, mas com uma concentração de riqueza cada vez maior. É um país que não dá condições de vida saudável e de bem viver à parte expressiva da população", lamenta.

Especificamente sobre a Paraíba, Flávia diz que mais da metade dos domicílios paraibanos convivem hoje com algum tipo de insegurança alimentar entre seus habitantes. "Isso se caracteriza quando as pessoas têm preocupação ou incerteza sobre se vão ter o que comer na próxima refeição", ensina.

Por fim, fazendo referência a pesquisas como a da Rede Penssan, ela explica que existem dados estatísticos que comprovam o aumento da fome, mas pondera que a percepção das pessoas é sim um dado que dá para ser levado em consideração.

"A gente sai na rua e vê as pessoas pedindo comida. Os pedidos de vaquinhas aumentaram. Então há sim uma percepção do aumento da pobreza", conclui.

Fonte: G1/

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