Esquema do governo destina R$ 3 bilhões em emendas para auxiliar base no Congresso; parte delas é gasta para compra de tratores com preços até 259% acima dos valores de referĂȘncia
Um esquema montado pelo presidente Jair Bolsonaro, no final do ano passado, para aumentar sua base de apoio no Congresso criou um orçamento paralelo de R$ 3 bilhões em emendas, boa parte delas destinada à compra de tratores e equipamentos agrĂcolas por preços até 259% acima dos valores de referĂȘncia fixados pelo governo.
O flagrante do manejo sem controle de dinheiro pĂșblico aparece num conjunto de 101 ofĂcios enviados por deputados e senadores ao Ministério do Desenvolvimento Regional e órgãos vinculados para indicar como eles preferiam usar os recursos.
O detalhe é que, oficialmente, o próprio Bolsonaro vetou a tentativa do Congresso de impor o destino de um novo tipo de emenda (chamada RP9), criado no seu governo, por "contrariar o interesse pĂșblico" e estimular o "personalismo". Foi exatamente isso o que ele passou a ignorar após seu casamento com o Centrão.
Os ofĂcios, obtidos pelo Estadão ao longo dos Ășltimos trĂȘs meses, mostram que esse esquema também atropela leis orçamentĂĄrias, pois são os ministros que deveriam definir onde aplicar os recursos. Mais do que isso, dificulta o controle do Tribunal de Contas da União (TCU) e da sociedade. Os acordos para direcionar o dinheiro não são pĂșblicos, e a distribuição dos valores não é equânime entre os congressistas, atendendo a critérios eleitorais. Só ganha quem apoia o governo.
O senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), por exemplo, determinou a aplicação de R$ 277 milhões de verbas pĂșblicas só do Ministério do Desenvolvimento Regional, assumindo a função do ministro Rogério Marinho. Ele precisaria de 34 anos no Senado para conseguir indicar esse montante por meio da tradicional emenda parlamentar individual, que garante a cada congressista direcionar livremente R$ 8 milhões ao ano. Ex-presidente do Senado, Alcolumbre destinou R$ 81 milhões apenas à Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do ParnaĂba (Codevasf), a estatal que controla, ao lado de outros polĂticos.
Um caso emblemĂĄtico é o do deputado LĂșcio Mosquini (MDB-RO). O governo aceitou pagar R$ 359 mil num trator que, pelas regras normais, somente liberaria R$ 100 mil dos cofres pĂșblicos. No total, o deputado direcionou R$ 8 milhões.
HĂĄ situações até em que parlamentares enviaram milhões para compra de mĂĄquinas agrĂcolas para uma cidade a cerca de dois mil quilômetros de seus redutos eleitorais. É o caso dos deputados do Solidariedade Ottaci Nascimento (RR) e Bosco Saraiva (AM). Eles direcionaram R$ 4 milhões para Padre Bernardo (GO). Se a tabela do governo fosse considerada, a compra sairia por R$ 2,8 milhões. À reportagem, Saraiva disse que atendeu a um pedido de Nascimento, seu colega de partido. Por sua vez, Nascimento afirmou ter aceito um pedido do lĂder da legenda na Câmara, Lucas VergĂlio (GO).
Planilha secreta do governo obtida pelo Estadão revela que Alcolumbre também destinou R$ 10 milhões para obras e compras fora do seu Estado. Dois tratores vão para cidades no ParanĂĄ, a 2,6 mil quilômetros do AmapĂĄ. Sem questionar, o governo concordou em comprar as mĂĄquinas por R$ 500 mil, quando pelo preço de referĂȘncia sairiam por R$ 200 mil.
As mĂĄquinas são destinadas a prefeituras para auxiliar nas obras em estradas nas ĂĄreas rurais e vias urbanas e também nos projetos de cooperativas da agricultura familiar. Os polĂticos costumam promover festas de entrega dos equipamentos, o que lhes garante encontros e fotos com potenciais eleitores em ano pré-eleitoral.
Ao serem entrevistados, deputados e senadores negavam o direcionamento dos recursos ou se recusavam a prestar informações. Confrontados com ofĂcios assinados por eles e a planilha do governo, acabaram por admitir seus atos.
"Minha cota" e "fui contemplado": os termos nos ofĂcios dos parlamentares
O deputado Vicentinho Junior (PL-TO) escreveu à Codevasf que havia sido "contemplado" com o valor de R$ 600 mil para compra de mĂĄquinas. "Dificilmente esse ofĂcio foi redigido no meu gabinete, porque essa linguagem aĂ, tão coloquial, eu não uso", disse.
Somente após o Estadão encaminhar o documento, Vicentinho Junior admitiu a autoria, mas minimizou a expressão "contemplado" ali utilizada. "Às vezes, uma colocação nesse sentido nada mais é do que ser simpĂĄtico", resumiu.
"Minha cota", "fui contemplado" e "recursos a mim reservados" eram termos frequentes nos ofĂcios dos parlamentares. Foi dessa Ășltima forma que a deputada e atual ministra da Secretaria de Governo, FlĂĄvia Arruda (PL-DF), se dirigiu à Codevasf para definir o destino de R$ 5 milhões. "Não me lembro. Codevasf?", perguntou ao Estadão.
Ao ler o documento, FlĂĄvia desconversou: "É tanta coisa que a gente faz que não sei exatamente do que se trata". Nem tudo, porém, é registrado. O senador Rodrigo Cunha (PSDB-AL) admitiu que "ditou" para o ministro Marinho onde R$ 7 milhões deveriam ser aplicados.
Na prĂĄtica, a origem do novo esquema estĂĄ no discurso de Bolsonaro de não distribuir cargos, sob o argumento de não lotear o primeiro escalão do governo. De um jeito ou de outro, a moeda de troca se deu por meio da transferĂȘncia do controle de bilhões de reais do orçamento ao Congresso. Tudo a portas fechadas, longe do olhar dos eleitores.