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Gilmar Mendes: "Lava Jato terminou como uma organização criminosa"

Por Redação em 17/03/2024 às 10:54:35
Foto: Reprodução internet

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Em seu gabinete, na cobertura do prédio anexo do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Gilmar Mendes despacha cercado de fotos com jogadores e personalidades do futebol brasileiro. Os livros jurĂ­dicos dividem espaço nas paredes com bolas, troféus, medalhas e dezenas de camisetas de times autografadas. "Pelezista" declarado, o ministro também ostenta diversos quadros com fotos tiradas ao lado do eterno Camisa 10 da seleção brasileira.

Decano do STF, com 22 anos de toga, Mendes recebeu as equipes da AgĂȘncia Brasil e da TV Brasil nesse espaço depois das 20h de uma terça-feira. Ainda terminava seu jantar, na mesma mesa de reuniões usada para o trabalho, mas não se perturbou ao perceber a entrada de jornalistas e da equipe de imagem. "Tudo bem, como vai?", cumprimentou, antes de retomar a refeição.

Pouco avesso a sorrisos, como de costume, retirou-se para uma sala anexa após o jantar para, minutos depois, retornar para a entrevista. Sentou-se calmamente na cadeira de seu gabinete, jĂĄ sabedor do tema da conversa.

A história acabou por lhe dar razão, após ser criticado nos primeiros anos de Operação Lava Jato. E foi assim que discorreu sobre o tema, com a tranquilidade de quem não se perturbou diante dos mitos e heróis sem capa surgidos durante esse perĂ­odo. Essas mesmas figuras seriam destronadas com o passar do tempo.

O inĂ­cio da operação completa dez anos neste domingo, dia 17 de março e, para o ministro, o balanço é "marcadamente negativo". Em sua opinião, a Ășnica lição aprendida pelo paĂ­s foi a de não combater o crime praticando outros crimes. Gilmar Mendes afirma ter sido ele a primeira voz a se levantar contra os abusos da operação, como as prisões alongadas em Curitiba e as delações inconsistentes.

O ministro estabelece uma relação contraditória entre a Lava Jato e as atividades que a operação buscava combater.

"Na verdade, a Lava Jato terminou como uma verdadeira organização criminosa, ela envolveu-se em uma série de abusos de autoridades, desvio de dinheiro, violação de uma série de princĂ­pios e tudo isso é de todo lamentĂĄvel".

Durante a operação, Gilmar Mendes foi figura central em decisões importantes para os rumos da Lava Jato. Entre elas, a que declarou a incompetĂȘncia da 13ÂȘ Vara da Justiça Federal de Curitiba e anulou as ações penais contra Luiz InĂĄcio Lula da Silva. O magistrado também votou para considerar o ex-juiz Sergio Moro parcial em processos da operação.

Confira os principais trechos da entrevista:

AgĂȘncia Brasil: Ministro, a Operação Lava Jato completa dez anos no dia 17 de março, o senhor acha que a Lava Jato foi boa ou ruim para o Brasil? Qual é o saldo?
Gilmar Mendes: Eu acho que a Lava Jato fez um mal enorme às instituições. Bem inspirada talvez, no inĂ­cio, ela acabou produzindo uma série de distorções no sistema jurĂ­dico polĂ­tico. Por isso, o meu balanço é marcadamente negativo. Mas é claro que nós aprendemos da história, inclusive dos fatos negativos na vida dos povos, na vida das nações. Então, alguém sempre poderĂĄ dizer algo positivo. Nós aprendemos como não fazer determinadas coisas. E, nesse sentido, se pode até extrair aspectos positivos. O que a gente aprendeu? Eu diria em uma frase: não se combate o crime cometendo crimes. Na verdade, a Lava Jato terminou como uma verdadeira organização criminosa, ela envolveu-se em uma série de abusos de autoridades, desvio de dinheiro, violação de uma série de princĂ­pios e tudo isso é de todo lamentĂĄvel.

AgĂȘncia Brasil: Hipoteticamente: temos uma suspeita de corrupção no Brasil. Como agir corretamente, como proceder?
Mendes: A primeira coisa é não inventar a roda, é fazer aquilo que se tem que fazer, deixar que as autoridades policiais façam as investigações, que o Ministério PĂșblico faça o seu acompanhamento. Hoje, o paĂ­s dispõe de uma série de instrumentos para isso. E não imaginar que nós vamos ter heróis voadores, que vamos ter pessoas que resolvem com um milagre a questão da corrupção no paĂ­s. E fazer as coisas com o devido processo legal. Acho que isso é extremamente importante. Investigações espetaculares, tonitruantes, a gente tem aĂ­ aos montões e depois nós temos apenas um resto de lixo em anulações, em não hĂĄ aproveitamento de provas, como acabou ocorrendo aqui na Lava Jato. Acho que o que a Lava Jato vai ensinar ao sistema jurĂ­dico processual brasileiro é como não se fazer determinadas coisas e ensinar que nós devemos ser extremamente cautelosos em relação a essas questões, aos procedimentos jurĂ­dicos, para não produzirmos situações estapafĂșrdias.

AgĂȘncia Brasil: A punição às empresas e às pessoas foi além da conta?
Mendes: Tudo o que é excessivo e tudo que é indevido, certamente, é além da conta. Nós vamos ter que discutir isso agora. Certamente, muitos vão dizer: "ah, tem réus confessos que estão sendo isentados de culpa por conta de falhas processuais", mas é assim no Estado de Direito em qualquer lugar. Então, não hĂĄ nenhuma surpresa em relação a isso e vamos ter que fazer também um exame caso a caso, isso não se resolve em um juĂ­zo completo, direto. E é isso que nós estamos fazendo e temos feito, tivemos o processo do Lula e outros. Então, me parece que nós fomos de uma euforia quase alcoólica a uma depressão, e os dois estados não são bons. É importante que nós estejamos atentos para fazermos o trabalho de maneira correta e acho que é isso que nós temos que inculcar nos agentes policiais, nos agentes de Receita, nos agentes investigadores todos, do Ministério PĂșblico e os próprios juĂ­zes.

AgĂȘncia Brasil: Muito antes da Vaza Jato, o senhor jĂĄ dizia que o STF teria um encontro marcado com a Operação Lava Jato, o que que havia? O que o senhor ouvia nas audiĂȘncias com os advogados, qual era a percepção na época?
Mendes: JĂĄ se disse que o problema do diabo não é que ele seja o diabo, né? É que ele é velho, ele é experiente. Então, a gente aprende a fazer essas leituras e colhe também experiĂȘncias. A primeira coisa que eu vi, acho que foi em 2015, foram as prisões alongadas de Curitiba. E, claro, os advogados passaram a dizer que as prisões alongadas eram utilizadas como uma forma de tortura para obter delações. E delações que muitas vezes se mostraram inconsistentes. Delações que muitas vezes se transformaram em acordos de leniĂȘncia, por isso os questionamentos de agora. Então, nós tivemos toda a essa situação e eu fui talvez a primeira voz a levantar contra essa situação.

E depois ganhei a convicção de que não se tratava apenas de uma irregularidade procedimental ou processual e que na verdade nós estĂĄvamos diante de um movimento polĂ­tico, como depois se revelou no contexto geral: [Sergio] Moro [virou] o ministro da Justiça de Bolsonaro, Deltan Dallagnol, um ativista polĂ­tico. E a gente também descobriu, isso é uma coisa bastante peculiar, que o volume de dinheiro com o qual eles se envolviam também os estimulou a ter suas próprias empresas ou participar disso. AĂ­ surge a tal Fundação Dallagnol lĂĄ em Curitiba. Aqui em BrasĂ­lia surge também algo semelhante com a tal Operação Greenfield. A gente descobre que esses nossos "combatentes da corrupção" gostavam muito de dinheiro, o que é uma contradição nos próprios termos. O ministro Salomão [Luis Felipe Salomão, corregedor Nacional de Justiça] estĂĄ encerrando um trabalho sobre essa questão e diz que hĂĄ uma quantia perto de R$ 1 bilhão que não se sabe para onde foi, do dinheiro que estava depositado na vara em Curitiba. Então, isso precisa ser esclarecido.

AgĂȘncia Brasil: O senhor jĂĄ disse anteriormente que todo o sistema polĂ­tico e o governo na época da Lava Jato foram ingĂȘnuos. Como o senhor avalia o comportamento do STF nesse perĂ­odo?
Mendes: A Operação Lava Jato não era uma operação puramente judicial, policial ou de investigação administrativa, eles fizeram uma força-tarefa e lograram um apoio pĂșblico muito grande, um apoio de mĂ­dia. E eu tenho a impressão que esse apoio de mĂ­dia teve também um efeito inibitório sobre o Supremo Tribunal Federal. Eu acompanhei os primeiros habeas corpus desde 2014, que começaram a chegar, o ministro Teori [ministro Teori Zavascki, relator da Lava Jato no STF] era o ministro relator e havia jĂĄ essa força não só de Moro e de sua equipe, mas também da Procuradoria-Geral, Janot [Rodrigo Janot, então PGR]. E é capaz que o Tribunal naquele momento não tenha tido a leitura devida de todas as questões envolvidas do ponto de vista polĂ­tico, e isso demorou a se consolidar. Tanto é que quando eu mesmo assumo um papel de mais crĂ­tico do sistema fico também um pouco isolado e a mĂ­dia toda dizia: "essa decisão parece contrariar a Lava Jato", como se a gente estivesse contrariando Roma ou falando mal do papa. Então, havia um domĂ­nio em relação a isso. E houve até operações que foram feitas nesse espĂ­rito, ainda que não conduzidas pela Lava Jato, por exemplo, aquela operação do Joesley [Batista, ex-presidente da JBS] vis-à-vis ao presidente da RepĂșblica Michel Temer em que, obviamente, o que o presidente disse foi uma coisa, o que foi divulgado foi outra. E isso foi divulgado pela Globo, portanto em uma combinação certamente do procurador-geral Janot com a direção da Globo ou setores de mando na instituição. Depois se viu que aquilo era falso.

AgĂȘncia Brasil: Ministro, se a Vaza Jato não tivesse acontecido, qual teria sido desfecho da Operação Lava Jato, na sua avaliação?
Mendes: Eu tenho impressão, por exemplo, que no meu processo, que foi talvez um turning point nessa questão, que foi o processo do presidente Lula sobre a suspeição, eu até disse isso no voto: nós tĂ­nhamos uma perspectiva jĂĄ de afirmação da suspeição com os elementos existentes nos autos. Acho que terĂ­amos chegado ao mesmo resultado, mas é inegĂĄvel que a Vaza Jato mostrou que o rei estava nu. Mostrou como eram feitos os pastéis e como eles eram malfeitos. Então, tudo aquilo que nós supĂșnhamos ou intuĂ­amos foi confirmado.

AgĂȘncia Brasil: Houve desvio, mas também houve muito prejuĂ­zo para dezenas de empresas que foram prejudicadas. Como combater a corrupção sem a derrocada da economia?
Mendes: Eu acho que esse também é um aprendizado. Naquele momento, me parece que o Brasil estava vivendo uma fase muito peculiar: o governo Dilma débil, fraco, vem o governo Temer também acusado, envolto naquelas mesmas circunstâncias. O sistema polĂ­tico estava no chão, e os procuradores e o próprio Moro eram como se déspotas esclarecidos, ou nem tanto, podiam fazer o que quisessem. Acho que é um modelo de difĂ­cil reaplicação hoje. Então, dificilmente todas essas circunstâncias históricas vão se consolidar para uma tal situação. Mas eu me pergunto se não é o caso de, de fato, nós mudarmos a legislação e eventualmente separarmos a empresa e pensarmos inclusive em modelos de direito comparado para eventualmente punirmos os agentes empresariais e separamos a empresa. HĂĄ empresas que empregavam 150 mil pessoas hoje empregam 14, empresas que foram destruĂ­das. E hĂĄ também todo um discurso de que isso também se fez atendendo a interesses internacionais. E nem isso a gente pode negar peremptoriamente.

*Colaborou Marcelo Brandão

Fonte: AgĂȘncia Brasil

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